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A indiferença, o rito e a espera em Um dia depois do outro

 

Em seus primórdios, para a fotografia obter definições minimamente precisas do real, à câmera que o capturava e ao fotógrafo eram exigidos a destreza e o zelo próprios de quem possui tempo para dispender enquanto espera ou acredita se aproximar do desconhecido. Pouco se previa, justamente porque a fotografia, além de estreitar a conversa com a luz e dela retirar um extrato do real, mantinha-se à escuta do lugar, sugeria a pausa para a pose e se constituía em momentos de impregnação na paisagem, dando a ver um trabalho prévio que funcionava como um ritual. E como o rito e a espera caminham juntos em muitos momentos, as causas que fizeram com que, na contemporaneidade, a extinção de um suscite paulatinamente a perda de sentido que há na outra criaram situações irrevogáveis, de modo que o sujeito passa a perceber a si mesmo cada vez mais sem eira nem beira ou tribeira. Vive-se sem rito e quase sem o ímpeto à espera. Ou, quando muito, associa-se espera à inércia, o que é o mesmo que fazer com que ela se torne um antídoto para a frustração advinda juntamente com a não experiência da paisagem como lugar de passagem, não de propriedade perene ou de estabilidade. Ao jogar para o futuro uma carga que comumente não faz outra coisa senão produzir trauma e angústia — porque a espera é um ato calcado no presente, não no futuro —, o sujeito parece viver à espera daquilo que sequer reconhece esperar. E, com a perda diária do valor da ação que atribui à espera o tempo para o revelar — vocábulo presente na história da fotografia que estendia o tempo —, o que resta é um resquício de ritual. Um resquício que torna a fotografia, cada vez mais, um mero artifício para as comunicações de massa ou para a autopromoção. Por isso o frenesi atual destoa o lugar que o rito ocupa na fotografia. Algo que advém da incapacidade de dar tempo ao tempo, ou de assistir a momentos em que ele traça situações improváveis no real, características de sua apoderação de tudo o que se estrutura no espaço.

 

No caso da fotografia nascente do século XIX, a despeito de todas as limitações técnicas e de busca incessante pelo domínio de algo desconhecido ou ainda inexistente, que potencializava ainda mais o rito e a espera, é importante considerar que o longo tempo de exposição carregava-a de propriedades cujo valor simbólico pode ser entrevisto na produção contemporânea. O que significa pensar que, para a fotografia nascente — e em outra medida para a produção atual —, a identificação da paisagem era tanto menos importante quanto era a sua conceituação. Havia, antes de tudo, um tempo necessário entregue à prática e ao processo de elaboração da imagem. Também é fato que, no século XIX, seja a conceituação ou a paisagem, ambas nasciam juntamente com a técnica da fotografia, mas era esta última quem ganhava força toda vez que uma tiragem vinha ao mundo, indiferente de se tratar de uma vista da janela em contexto urbano, de uma parcela medíocre de paisagem bucólica ou de qualquer evento burlesco da contemporaneidade. Entendia-se que a forma, ao deixar o lugar, em muitos momentos, para a técnica, era a grande responsável pela imortalização do seu inventor.

 

Embora o trecho acima introduza o já introduzido, por se tratar de conhecimento enciclopédico em relação à prática da fotografia, ele precede a entrada no conjunto de obras da exposição Um dia depois do outro, de Renata Padovan, para cogitar encontros entre as imagens produzidas pela artista para essa série — com linguagens próximas às da fotografia inventiva do século XIX —, sobretudo no que tange ao aspecto que as qualificaria como sendo indiferentes ao lugar. Não se trata de atenuar qualquer sentimento nostálgico em relação ao modo de produção de fotografias no século retrasado. Há apenas um interesse em aproximar procedimentos distintos para ver de que modo as ideias se encontram em determinado momento. Assim, o fato de uma parte significativa da fotografia nascente ter se debruçado sobre o domínio da técnica pode, eventualmente, ser percebido em Um dia depois do outro como os filamentos de imagens em que o resultado gráfico-poético deixa para o segundo plano a experiência mimética do lugar. O que favorece a construção de grandes planos de cor alternados por uma palheta cuja gradação tonal transforma a paisagem em manchas e faz com que a fotografia assuma a ideia de que a indiferença em relação ao amontoado de imagens representativas do mundo aumenta a possibilidade de o sujeito perder o seu fio da meada em relação ao que se sabe sobre o visível. E, no caso de Um dia depois do outro, é a sensação de perda da meada inteira que a obra propõe. Daí a quantidade de informações que ficam soltas no ar: que lugar é este? Por que cargas d’água se repete aos montes? Qual é o seu valor para o mundo? Quão longe ele se encontra do que se convencionou chamar de centro? Qual é o seu centro e a sua margem? Acaso ele já é zona marginal? Se for, quem inventou o centro para o qual ele assume a posição marginal? Essas e outras questões permanecem no aguardo de respostas tangíveis. Enquanto isso, aludem, entre outras, às incongruências relativas ao modo como o sujeito desenha as fronteiras ou inventa conceitos como perto e longe. O longo tempo de exposição e de trabalho de espera elabora, também, um arcabouço de ações que atuam no contrafluxo do que muitos qualificariam nos dias de hoje como sendo perda-de-tempo. Ao sugerir perda do fio da meada, Um dia depois do outro alude, também, àquilo que está por trás da paisagem e de suas cores cambiantes e que percebe e registra o fluir incessante do tempo. Confrontá-lo com a caraterística em certo grau estereotipada do sujeito contemporâneo, qual seja, a de ser um sem-tempo que parece não buscar outra coisa senão um pouco mais de tempo para experimentar o tempo que perdeu, encontra seu eco no que se convencionou chamar de perda-de-tempo. Ou seja, muito se fala sobre não ter tempo porque o agir é quase sempre o que suscita a perda. Entre os paradoxos da perda e do ganho, e intimamente relacionadas com a ideia de convivência com a paisagem, eis que surgem algumas primeiras leituras dessas paisagens indiferentes. Sem literalidades acanhadas, a obra faz imagem de algo que facilmente se relacionaria com a expressão que afirma que não há “nada como um dia depois do outro”, lugar-comum que beira ora a improdutividade traumática, ora o rancor ou a lucidez desnecessária para o mundo, porque repleta de insensatez em relação ao passar do tempo e à ideia de reconfiguração da linguagem como a estrutura basilar das relações. Em vez disso, Um dia depois do outro joga para o mundo um postulado que traduz a expressão para apresentar uma paisagem longínqua que, antes de ser reconhecível em um mapa, é carregada de imprevisibilidades que dizem respeito ao modo como o tempo a marca de maneira indelével.

 

Travando uma conversa anacrônica com o uso da fotografia para retirar do real fragmentos sequenciais, a artista elabora um corpo de imagens que trata da forte camada de abstração, de traço e de vestígio que atravessa e define o real à primeira vista. Por isso, o que se vê de longe são linhas horizontais que alternam minimamente a sua gradação tonal. Trata-se de uma experiência pictórica que esconde em si um processo cuja proposição visa a experimentar a retirada de um pequeno curso do tempo para aproximar o sujeito do modo como ele imprime no mundo a sua passagem, sempre distinta e ritualística. E, se ainda existe ritual na fotografia, ele se dá pela relação estabelecida com o tempo, seu principal reitor. Isso porque distinção sugere a ideia de retorno, o que está intimamente ligado à série, que se constrói a cada dia, retornando ao lugar para vê-lo se distinguir do anterior. Ou seja, tudo o que retorna só o é por ser distinto; do contrário seria outro ato inaugural no mundo. Sendo a noite ou o dia eventos únicos, não seriam enigmáticos e imprevisíveis. Seriam factuais e repletos de especulações, mas também cheios de verdades fixas, avaliadas pelo distanciamento daquilo que ocorreu uma única vez. Por outro lado, o retorno, um após o outro, acaba por tornar as coisas familiares, e disso nasce um tanto de vícios de linguagens que fazem com que o sujeito acredite conhecer um ou outro fenômeno. Enquanto que, por ser repetição, qualquer fenômeno é sempre distinto e não raro constrói abismos até então desconhecidos pelo sujeito. Do insignificante ao expressivo, a imprevisibilidade do mundo é acarretada, muitas vezes, por incursões ou alterações na paisagem: um vento mais ou menos forte, uma pedra deslocada, um corte, nébula, sombra, luz, tudo afeta e altera o modo de perceber o mundo, o que acaba por ser outra maneira de dizer que é se juntando à instabilidade das coisas que a fotografia se aproxima do real, propondo suas versões antes conhecidas como positivas e negativas.

 

Com o daguerreotipo, o problema é colocado para o mundo, anunciando que a devida captura das coisas existe em determinado tempo de exposição que condiciona a fatura e o resultado da fotografia. Um dia depois do outro trata do tempo de trabalho, desta vez assumindo que com ele o que se quer é fixar no espaço as precisões de um momento fugidio. Cada instante é fixado de maneira sequencial. Por sua vez, cada sequência constrói o corpo de imagens e lida com momentos e um lugar específicos, vislumbrando o ausente contido no lugar. E ainda que a fotografia esteja sempre envolvida com a instabilidade e a ausência; e ainda que este texto não tenha por fim encontrar a singularidade da artista, visto a recorrência desse assunto em relação à prática da fotografia, o que se quer pensar é sobre o motor pulsante por detrás das imagens produzidas e sobre a ideia de encontro com o infinito. Como contraponto a esse assunto, a obra parece conviver com a escassez de imagens no mundo — que contraditoriamente sofre de poluição visual —, dada a proliferação incontida e vazia de sentido que faz da fotografia um-sem-fim de presença pautada quase sempre pelo interesse de ver e ser visto. Por isso, Um dia depois do outro retoma o valor da indiferença partindo de sua identidade primária, ou seja, percebe que todo retorno é ressonância. A obra se pauta na presença do lugar e percebe-a como matriz para a repetição de momentos fragmentados e cambiantes que atribuem valor poético ao instável. Isso porque, seja um pequeno curso de tempo ou o contrário, a instabilidade do mundo reforça a carga simbólica do infinito, para onde o sujeito sempre se dirige, sobretudo em momentos de perda. Um dia depois do outro reconhece no tempo infinitesimal a presença do infinito.

 

Josué Mattos

Revisão: Denize Gonzaga

 

 

Indifference, rite and waiting in Um dia depois do outro

 

In the early days of photography, obtaining minimally precise definitions of the real required skill and painstaking care from the both the camera and the photographer, as machine and man anxiously awaited an unknown result, which took considerable time in the making. Little could be foreseen, because photography, besides narrowing the conversation with light and extracting from it an excerpt of the real, demanded that the place be listened to; it suggested a pause for the pose, and was constituted in moments of saturation in the landscape, evidencing a prior work that functioned as a ritual. And since rite and waiting often go hand-in-hand, the causes which in contemporaneity did away with the gradual process of engendering that was once inherent to photography have created irrevocable situations where the subject feels increasingly impoverished. One lives without rites and nearly without the thrill of expectation. Or, at most, waiting is associated with listlessness, which is the same as turning it into an antidote for the frustration arising from the non-experience of the landscape as a place of passage, rather than a place of an enduring property or stability. By postponing a task that commonly does nothing more than produce trauma and anxiety – because waiting is an act couched in the present, not in the future – the subject seems to live in expectation of something he doesn’t even recognize he is waiting for. And, with the daily loss of the value of the action that attributes to waiting the time for the developing – a term present in the history of photography that lengthened the time of the process – what is left is a vestige of ritual. A vestige that increasingly makes photography a mere artifice for mass communication or self-promotion. For this reason the current frenzy desynchronizes the place that rite occupies in photography. This arises from the inability to give time to time, or to watch the moments when time traces unlikely situations in the real, characteristic of its power over everything that is structured in space.

 

In the case of the nascent photography of the 19th century, despite all the technical limitations and the ceaseless search for the mastery of something unknown or still inexistent, which further intensified the rite and the waiting, it is important to consider that the long exposure time charged it with properties whose symbolic value can be glimpsed in the contemporary production. This implies that, for the nascent photography – and in another measure for the current production – the identification of the landscape was less important than [Tr.1] its conceptualization. There was, before all else, a necessary time spent in the photographic practice and the process of elaborating the image. It is also a fact that, in the 19th century, in regard to both the conceptualization and the landscape, both were born together with the technique of photography, but it was the latter that gained force each time a print came into the world, regardless of whether it was a window view in an urban context, a mediocre portion of a bucolic landscape, or of any burlesque event of contemporaneity. It was understood that the form – when it gave way, at many moments, to technique – was the main reason for the immortalization of its inventor.

 

Although the above passage introduces what has already been introduced, since it concerns an encyclopedic knowledge in regard to the practice of photography, it allows for insight into the context of the works in the exhibition Um dia depois do outro [One Day after Another], by Renata Padovan, reflecting on encounters between the images produced by the artist for this series – with languages close to those of the inventive photography of the 19th century – especially in what touches on the aspect that qualifies them as being indifferent to the place. The idea is not to lessen any nostalgic feeling in relation to the way that photographs were produced in the 19th century. The aim is only to compare different procedures to see in what way the ideas come together at a determined moment. Thus, the fact that a significant part of the nascent photography was focused on the mastery of technique can, eventually, be perceived in Um dia depois do outro as the filaments of images in which the graphic-poetic result lends less importance to the mimetic experience of the place. This favors the construction of large planes of color alternated by a palette whose tonal gradation transforms the landscape into patches of color and makes the photograph assume the idea that the mass of images representative of the world increases the possibility of the subject’s losing the contextual thread in relation to what is known about the visible. And, in the case of Um dia depois do outro, what the work proposes is the sensation of the loss of the whole ball of thread. This explains the amount of information hanging loose in the air: What place is this? Why on earth is there so much repetition? What is its value for the world? How far does it lie from what is conventionally called the center? What is its center and its fringe? By any chance is it already a marginal zone? If so, who invented the center for which it assumes a marginal position? These and other questions remain in wait of tangible answers. Meanwhile, they make various allusions, including to the incongruencies relative to the way the subject draws the borders or invents concepts like near and far. The long exposure time and the long time of the work of waiting also elaborates a framework of actions that run against the grain of what many qualify nowadays as a loss of time. By suggesting the loss of the contextual thread, Um dia depois do outro also alludes to that which lies beyond the landscape and its changing colors, and which perceives and registers the incessant flow of time. Confronting it with the somewhat stereotypical characteristic of the contemporary subject – that of being a person without time who seems to seek nothing else but a little more time to experience the time that was lost – finds its echo in what was conventionally called a loss of time. That is, much is said about not having time because performing some action is almost always what causes the loss. It is among the paradoxes of loss and gain, and intimately related with the idea of a familiar relationship with the landscape, that some first readings arise for these indifferent landscapes. Without awkward literalities, the work makes an image of something that would readily be related with the expression “there’s nothing like one day after another,” a commonplace saying that has to do either with traumatic unproductiveness, rancor, or unnecessary lucidity in regard to the world, since it is full of insensitivity in relation to the passing of time and to the idea of the reconfiguration of language as the basic framework for relations. Instead, Um dia depois do outro involves a postulate that transposes this expression to present a faraway landscape which, rather than being recognizable on a map, is charged with unforeseeabilities related to the way it is marked indelibly by time.

 

Engaging in an anachronistic conversation with the use of photography to extract sequential fragments from the real, the artist elaborates a body of images that deals with the strong layer of abstraction, the line and the vestige that crosses and defines the real at first sight. For this reason, what one sees from a distance are the horizontal lines with a slightly alternating tonal gradation. It is a pictorial experience that conceals within it a process aimed at experiencing the extraction of a small course of time to approximate the subject in terms of how it imprints its always distinct and ritualistic passage on the world. And, if ritual still exists in photography, it takes place through the relationship established with time, its main rector. This is because distinction suggests the idea of a return, which is intimately linked with the series, which in turn is constructed day by day, returning to the place to see it distinguished from the previous one. That is, the very nature of a return implies distinction[Tr.2] ; otherwise it would be another inaugural act in the world. As night or day are single events, they would not be enigmatic and unforeseeable. They would be factual and full of speculations, but also full of fixed truths, evaluated by the distancing from that which took place just once. On the other hand, the return, one after another, winds up making the things familiar, thus giving rise to vices of languages that make the subject think he knows one phenomenon or another. Whereas, for being repetition, any phenomenon is always distinct and not rarely constructs abysses previously unknown to the subject. From the insignificant to the expressive, the world’s unforeseeability is often caused by incursions or alterations in the landscape: a more or less strong wind, a displaced stone, a cut, fog, shadows, light, everything affects and alters the way that one perceives the world, which winds up being another way of saying that it is by joining the instability of things that photography approaches the real, proposing its versions better known as positive and negative.

 

With the daguerreotype, the problem is posed for the world, announcing that the due capture of things lies in a determined exposure time that conditions the making and the result of the photography. Um dia depois do outro has to do with the time of work, assuming on this occasion that its intended goal is to fix in space the precisions of a fleeting moment. Each instant is fixed in a sequential way. For its part, each sequence constructs the body of images and deals with determined moments at a specific place, catching sight of the absence contained in that place. And even though photography is always involved with instability and absence; and even though this text does not aim to pinpoint the artist’s singularity, in light of the recurrence of this subject matter in relation to the practice of photography, it wishes to reflect on the motor that pulsates behind the produced images and on the idea of an encounter with the infinite. As a counterpoint to this subject matter, the work seems to exist together with the scarcity of images in the world – which contradictorily suffers from visual pollution – given the unbridled proliferation and emptying of meaning that makes photography an endless presence nearly always driven by the interest to see and to be seen. For this reason, Um dia depois do outro reassumes the value of indifference based on its primary identity, that is, it perceives that every return is a resonance. The work is driven by the presence of the place and perceives it as a matrix for the repetition of fragmented and changing moments that attribute poetic value to the unstable. This is because whether it is a small course of time or the contrary, the world’s instability reinforces the symbolic charge of the infinite, towards which the subject is always headed, especially at moments of loss. Um dia depois do outro recognizes the presence of the infinite in the infinitesimal time.

 

 

Josué Mattos

Revised by: Denize Gonzaga

Tradução: John Norman

 

 

 

 

 [Tr.1]A frase em português "a identificação da paisagem era tanto menos importante quanto era a sua conceituação" admite de mais de uma leitura no contexto. Aqui, consistente com a frase inicial da oração "This implies that...", foi interpretada de acordp com a oração anterior, que fala da carga de valor simbólico -- assim, a conceituação foi mais importante do que a identifiação.

 

 

 [Tr.2]Esta frase foi reconstruida para o texto em inglês por causa da impossibilidade de uma interpretação neutral do "o" na frase "só o é". A mesma ideia foi conservada.

PARA MOVER MONTANHAS // Marisa Flórido

 

Entre os desenhos do mundo e sua concretude há, sobretudo, um vão, uma distância, uma inadequação. Horizontes, fronteiras, meridianos tentam – em vão – contorná-lo e designá-lo. Convenções buscam ancorar fugas e partidas, estabelecer laços solidários entre o homem e os espaços por onde ele se move. Mapas riscam, na carne do mundo, tanto sua totalidade quanto a fragmentação e partilha de seu solo. Coordenadas alinham a terra e seus ciclos à coreografia das altas esferas, à música cósmica e surda que delas talvez ecoe. Paisagens supõem atar, por uma linha, os desígnios do horizonte à inconstância movediça dos solos, o confinamento da matéria à demasia do espírito.

 

Mas é nesse vão, nessa inadequação, que a imaginação trabalha e a arte sonha mundos além de suas bordas. São linhas, horizontes, fronteiras, trilhas que Renata Padovan  redesenha, fragmenta, transpõe, em paisagens e cartografias das dispersões. São obras que começam nos extremos do mundo: arte que encontra sua possibilidade apenas ali onde convenções, horizontes e coordenadas se esgotam. Ali onde as montanhas se movem, os horizontes flutuam suspensos, os conflitos silenciam e a grama cresce indiferente ao ritmo de nossas deambulações. Onde, dispersos e errantes em um universo sem centro, absortos em nossa inelutável solidão, a palavra fraturada é capaz de se converter no canto melancólico das gaivotas.

 

Fronteiras são limites abstratos na pele do mundo traçados por conflitos na carne do homem.  Se mapas sistematizam em uma superfície bidimensional as informações recolhidas sobre um espaço, se revelam visões de uma época, também possuem uma dimensão temporal: a dimensão das disputas por territórios, da história dos poderes e dos domínios, das reservas e das exclusões. Fronteiras pensam circunscrever, nos fragmentos, identidades, línguas, culturas. Proteger das contaminações exteriores. Resguardar do outro, desse invasor, desse estrangeiro aos reinos que nos são familiares.

 

Mas se mapas  são arquivos de informações, são também a reserva dos sonhos, a escrita dos viajantes, a imaginação dos navegantes. Por isso o fascínio que os mapas exercem nos artistas, essa espécie de corsários. Nas cartografias dos artistas, saqueiam-se as geografias para perder-se em seus devaneios, para abrir mundos além. Por isso Renata se apropria de mapas e inverte seu procedimento (“Arquivo- E”): se as fronteiras européias fragmentam a extensão fluida de um solo que deveria acolher a todos, mais vale fraturar as fronteiras; se mapas são arquivos de visões de mundo, trata-se então de arquivar as soberanias que as fronteiras representam, como relicários do passado, calar déspotas e tiranos no silêncio do feltro e das gavetas.  Devolver às margens, suas porosidades, as distâncias do centro  que insiste em perseguir a Origem, a Loba mãe. Devolver a ousadia de Remo, que atravessou a fronteira e foi assassinado pelo irmão. Na Roma extraviada, as margens demonstram que metamorfoses e contaminações ocorrem de ambos os lados.

 

Se as fronteiras conservam o paradoxo das margens, as ilhas guardam o imaginário da (re)criação e, as montanhas, o domínio das distâncias e das elevações. Em “Island”, a artista redesenha insistentemente os contornos da Islândia em um livro de papéis translúcidos. Superpõe simbologias: a ilha é um mundo sem o risco de contágios, um mundo que se fundamenta em si mesmo, absoluto e supremo. Origem perfeita e imaculada (como Atlântida) ou destino das recriações (como a ilha de Morus), a ilha é a promessa dos recomeços, mas é também a dor e a solidão do isolamento e da deriva (Crusoé, Alcatraz, Guantánamo). A existência sem conexão, como um fragmento disperso e náufrago.

 

E o fragmento é o limite da representação, é a irrupção do irrepresentável, alusão ao que nos excede, mas que interrompe as simbolizações no lugar e no instante de sua aparição. É a esse excedente sem contornos que a existência se compara e se expõe.  Se os horizontes não são fixos, eles flutuam na suspensão que as paisagens encerram. A arte é então capaz de mover montanhas, transportar os afetos que as inalcançáveis montanhas  (se são no Canadá, não importa) imprimem em nossa sensibilidade.

 

Transpor “fragmentos” de seu skyline para doá-los aos céus de outro. “Não se orienta na paisagem”, como disse Gilles Tiberghian  [ Finis terrea, p.144]. “A relação que estabelecemos com ela não é da ordem métrica, mas musical”. Como fizera com os horizontes e as fronteiras, em “Void”, Renata Padovan fragmenta a linguagem (esse mapa da voz e da comunicação), ao ponto do verso tornar-se apenas som, o grito triste e crepuscular das gaivotas. Suspensos no ar, somos lançados no exílio (ex solum) de toda existência, na falta de solo de toda vida. Sem marcação espacial, é o ritmo e o som do poema fragmentado que nos informam do vazio e do silêncio, da multidão e da solidão que nos habitam  Que afirmam, no canto incompreensível de pássaros que não existem, a possibilidade dos sonhos, o desejo da arte em mover e doar montanhas.

 

I had a dream, I was in a void, floating. Inside of me, there were a million voices, and they cried, like seagulls.

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To move mountains

 

Marisa Flórido

 

 

Between the drawings of the world and its concreteness there is, above all, a gap, a distance, a lack of fit. Horizons, borders and meridians try – in vain – to encompass it, to designate it. Conventions seek to anchor escapes and departures, to establish solidary bonds between man and the spaces through which he moves. Maps scratch, on the world’s flesh, both its wholeness as well as the fragmentation and divisions of its soil. Coordinates align the earth and its cycles with the choreography of the celestial spheres, to the cosmic, unheard music which perhaps echoes from them. By means of a line, landscapes aim to bind the designs of the horizon to the slippery inconstancy of the soils, the confinement of matter to the excess of the spirit.

 

Yet it is this gap, this lack of fit, that the imagination works with; and art dreams of worlds beyond its limits. Lines, horizons, borders, and paths are what Renata Padovan redraws, fragments and transposes, in landscapes and cartographies of the scatterings. They are artworks that begin at the ends of the world: art that finds its possibility only there, where conventions, horizons and coordinates are exhausted. There, where the mountains move, the horizons float suspended, the conflicts become silent and the grass grows indifferent to the pace of our roaming footsteps. Where, scattered and nomadic in a centerless universe, absorbed in our inescapable solitude, the fractured word can be converted into the melancholic song of the seagulls.

 

 

Borders are abstract limits on the skin of the world traced by conflicts in the flesh of man. If maps are a bidimensional systematization of information collected concerning a space, they reveal visions of an era, and also possess a temporal dimension: the dimension of the disputes for territories, of the history of powers and realms, of reserves and exclusions. Borders are meant to circumscribe, within the fragments, identities, languages and cultures. To protect from contaminations from the outside. To shut ourselves off from the other, this invader, this foreigner in the realms with which we are familiar.

 

But if maps are archives of information, they are also the reservoir of dreams, the writing of the travelers, the imagination of the navigators. This explains the fascination that maps hold for artists, those corsairs of sorts. In making their cartographies, the artists plunder the geographies to become lost in their driftings, to open worlds beyond. This is why Renata appropriates maps and inverts their procedure (Arquivo- E): if the European borders fragment the fluid extension of a land that should shelter everyone, fracturing the borders becomes more worthwhile; if maps are archives of worldviews, it’s a matter of archiving the sovereignties that the borders represent, like relics from the past, muting despots and tyrants in the silence of felt-lined drawers. Restoring the porosities to the fringes, the distances from the center that insists on pursuing the Origin, the mother She-Wolf. A return to the boldness of Remus, who crossed the border and was murdered by his brother. In Rome astray, the fringes demonstrate that metamorphoses and contaminations occur on both sides.

 

If the borders preserve the paradox of the fringes, the islands retain the image repertoire of the (re)creation, while the mountains are the domain of distances and elevations. In Island, the artist insistently redraws the outlines of Iceland in a book of translucent papers. She overlays symbolisms: the island is a world without any risk of contagion, a world founded on itself, absolute and supreme. A perfect and immaculate origin (like Atlantis) or the destiny of the re-creations (like More’s island), the island is the promise of the rebeginnings, but it is also the pain and loneliness of isolation and drifting (Crusoe, Alcatraz, Guantánamo). Existence without connection, like a scattered and castaway fragment.

 

And the fragment is the limit of representation, it is the irruption of the unrepresentable, an allusion to what surpasses us, but which interrupts the symbolizations at the place and instant of their appearance. This boundaryless surpassing is what existence is compared and exposed to. If the horizons are not fixed, they float in the suspension brought about by the landscapes. Art is therefore able to move mountains, to transpose the feelings that the unreachable mountains (if they are in Canada, it doesn’t matter) impress on our sensibility. To transpose “fragments” of their skyline to bestow them on the skies of another.

 

“One is not oriented in the landscape,” as Gilles Tiberghien states [Finis terrae, p. 144]. “The relationship we establish with it is not of a metric but rather a musical sort.” As she did with the horizons and the borders, in Void Renata Padovan fragments language (that map of voice and communication), to the point where verse becomes only sound, the sad and fading cry of the seagulls. Suspended in the air, we are thrown into exile (ex solum) from all existence, away from the soil, the supporter of all life. Without spatial delimiting, it is the fragmented poem’s rhythm and sound that tells us of the void and the silence, of the multitude and the solitude that lie within us. Which affirm, in the incomprehensible song of the inexistent birds, the possibility of dreams, the desire of art to move – and bestow – mountains.

 

I had a dream, I was in a void, floating. Inside of me, there were a million voices, and they cried, like seagulls.

 

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